Pois é. Chegou o grande dia. A partir de hoje, todo marmanjo que já leu alguma das várias sagas dos vingadores poderá conferir no cinema a adaptação dirigida por Joss Whedon. Sem dúvida, é um dos blockbusters mais esperados do ano e, se não fosse pelo terceiro Batman, que estreia em julho, seria a adaptação de quadrinhos mais aguardada de 2012. Pelo que já pude conferir das críticas, parece que a Marvel acertou em cheio com o filme e tem, a partir de agora, toda uma nova franquia pra explorar nos cinemas. Sorte da Disney, que tenta a todo custo se recuperar do fracasso de "John Carter".
Para polemizar um pouco, reproduzo aqui um belo post de André Forastieri, no qual ele comenta as injustiças cometidas com os autores de hq ao longo das décadas. Vale a leitura.
Os Vingadores foram criados em 1963 por Jack Kirby, desenhista, e Stan Lee, roteirista e editor. Thor, Hulk, Nick Fury e Homem de Ferro foram criados por Lee e Kirby, o último com participação do também desenhista Don Heck. O Capitão América foi criado em 1941 por Kirby e Joe Simon.
Gavião Arqueiro e Viúva Negra foram criados por Stan Lee e Don Heck.
Você não vai achar nenhuma destas informações no filme dos Vingadores.
Stan Lee está creditado como co-produtor. É parte de um acordo que ele fez com a Marvel, muitos anos atrás, resultado de um processo: todo filme Marvel tem seu nome como co-produtor, e ele recebe uma fatia (pequena e não-revelada) da receita. Kirby e Heck: nada. Perguntaram a Stan Lee se Kirby deveria ter algum crédito no filme. Resposta: não sou responsável por isso...
Don Heck
Kirby foi o maior criador de gibis de super-heróis. Não foi o primeiro, mas fez melhor que ninguém, e influenciou tudo que veio depois, de um jeito ou outro. Está para o gênero como John Ford para o faroeste e Elvis para o rock. Em dupla com Stan Lee, eram o Lennon/McCartney dos quadrinhos dos anos 60. Ninguém sabia onde começava um e terminava o outro. O divórcio foi igualmente feio.
Kirby nunca foi dono dos personagens que criou. Fazia de encomenda e ganhava por página. Era um garoto judeu durão que tinha uma família pra sustentar. Sempre foi este o esquema dos comics. Desde o início, anos 30, quando os gibis foram inventados por um bando de gângsters novaiorquinos (a história está muito bem contada no livro Homens do Amanhã, de Gerard Jones, que publiquei anos atrás - orgulho, orgulho).
Jack Kirby e Paul McCartney
Kirby morreu brigando com a Marvel. Por ótimas razões. A Marvel e a DC e todas as outras editoras tratavam seus frilas como lixo, inclusive os mais importantes. Nem as páginas que desenhavam eles podiam manter. A história é conhecidíssima nos meios dos quadrinhos.
Em 1976, por causa de uma nova lei de copyrights nos Estados Unidos, a Marvel teve que regularizar sua relação com os freelancers. Propôs um acordo com Jack Kirby, co-criador da maioria de seus personagens mais populares. Em troca de receber 88 páginas que ele mesmo tinha desenhado, Kirby deveria abrir mão de alguns direitos. Uma lista incompleta:
- Kirby concordaria que a Marvel era a única e exclusiva proprietária do copyright e da arte produzida por ele em todo o mundo
- Kirby não receberia royalties sobre o uso futuro de seu trabalho pela Marvel
- Kirby ficava proibido de auxiliar outros artistas a questionar o copyright da Marvel
- Marvel teria direito ao uso do nome Jack Kirby, de sua imagem e informação biográfica para uso de marketing ou em publicações
- Kirby não teria direito a copiar, expôr, ou mesmo doar sua arte
- e por aí vai.
Capa da primeira edição de The Avengers, contra Loki, mesmo inimigo do filme
Kirby se negou a fazer o acordo. A briga virou causa célebre. Criadores famosos apoiaram Kirby. Ele morreu antes que as regras mudassem para melhor. Ainda estão muitíssimo distantes do ideal. É por isso que mais e mais criadores (de quadrinhos, mas também de música, de filmes, de livros e de tudo mais que você imaginar) buscam lançar suas criações com o máximo de independência. Ou, quando trabalham com megacorporações, se enchem de precauções.
Mas no caso de personagens licenciados, tipo Batman ou Vingadores, ou mesmo a Turma da Mônica, não tem muito jeito. Você ganha pra produzir aquilo e boa. Uns dão crédito, outros não; uns dão royalties, outros não; mas sempre é muito claro contratualmente que é um trabalho de encomenda, e que a propriedade do seu trabalho é da empresa que encomendou o frila.
E no caso de criações antigas, do tempo de Kirby, ou mesmo nem tão antigas, não há como voltar atrás. Neil Gaiman não escreve mais histórias de Sandman porque a DC não paga os royalties que ele quer (por novas histórias e pelas reedições do original). A disputa de Alan Moore com a mesma DC já deu muito pano para manga e continua dando, com a anunciada série Before Watchmen, que recicla os personagens criados na graphic novel de Moore e Dave Gibbons.
Todos estes desenhistas e roteiristas que fizeram nossa alegria durante décadas ganhavam por página, às vezes com alguma quirelinha a mais. Esta semana mesmo, apareceu na web um pedido de socorro para o desenhista filipino Tony de Zuñiga, em estado terminal em Manilla, sem dinheiro para pagar o hospital. É co-criador do pistoleiro Jonah Hex, da DC, que teve seu próprio filme ano passado. Ganhou zero com o filme. É de cortar o coração.
Tony de Zuñiga
O processo e a pendenga Kirby x Marvel continuam até hoje, em um formato ou outro. Mas ano passado, a Marvel ganhou o principal processo dos herdeiros de Kirby. O juiz decidiu: o trabalho era work for hire, ou seja, trabalho feito por encomenda, e é isso aí.
O juiz está certo. O contrato realmente dizia que Kirby não tinha direito a ser dono de nada. Mas contratos no século 19 estipulavam a legalidade da escravidão, e nem por isso eram justos. Existe a lei e a justiça. Esse é o tema de muitos gibis de super-herói. Se a lei fosse sempre suficiente, superseres com roupas esquisitas agindo à margem da lei seriam desnecessários.
É injusto que um filme que custou US$ 220 milhões como Os Vingadores, e dará muita grana, não traga o crédito devido para os criadores que originaram estes personagens, nem os recompense financeiramente, ou a seus herdeiros. Estamos em 2012, não nos anos 30. Entendo a posição de Marvel, DC e cia. Se abrirem precedentes, arrisca aparecer uma enxurrada de criadores pedindo o que julgam ser seus direitos.
Mas vale o risco e é a coisa certa a fazer. É possível que a Disney, hoje dona da Marvel, dê os passos na direção certa em anos vindouros - particularmente quando temos gente como John Lasseter na alta direção da empresa. A Pixar, sob sua direção, fez uma verdadeira carta de amor a Jack Kirby, um desenho chamado Os Incríveis. Quem sabe os herdeiros de Kirby receberão o que Kirby fez por merecer, se bastante gente disser que é importante.
É particularmente injusta essa situação porque, pelo que os amigos garantem, o filme é um megaépico recheado de conflitos interpessoais e humor, marcas registradas do original de Lee e Kirby. Li minha primeira aventura dos Os Vingadores em 1974. Tenho pilhas de gibis dos maiores heróis da Terra. Claro que estarei no cinema este fim-de-semana, filho a tiracolo. Mas explicarei para Tomás: o que está na tela pode fazer justiça aos Vingadores. Mas o que está por trás, não.