Durante o ano de 2011 muito se falou e se comentou sobre a dita “primavera árabe”, a série de eventos ocorridos no norte da África e no Oriente Médio, com grande cobertura de jornalões e de grandes corporações de comunicação. Tal primavera surgiu nas telas como marco da “luta por democracia” naquela parte do planeta, como se a tomada da Bastilha fosse revisitada, encenada em novo cenário, as terras áridas e, segundo o senso comum globalizado, infestadas de terroristas ou homens-bomba em potencial. Deu-se, invariavelmente - com louváveis exceções entre as grandes redes -, a impressão de que o oriente médio entraria na era da democracia, assim, aparentemente tão de repente como um toque de mágica, geral e irrestrito, absoluto, capaz de transpor fronteiras e diferenças étnicas e religiosas do mosaico árabe.
Uma brevíssima análise da história recente do Oriente Médio aponta alguns exemplos interessantes, que comprovam as peculiaridades e riscos daquele cenário político e econômico, cheio de petróleo, quase sempre com o protagonismo de lideranças religiosas (ou político-religiosas – há naquelas bandas a indistinção entre política, Estado e religião). No final dos anos 1970, no Irã, uma “revolução” retirou do poder o xá autoritário, mas simpático aos interesses ocidentais, e no seu lugar afirmou uma teocracia de dar inveja aos mais reacionários sonhos e fetiches opusdeísticos. Um retorno à Idade do Bronze em pleno 1979, com a benção dos aiatolás, especialmente do famoso Khomeini. O tio Sam, abalado, não tardou a encontrar liderança na região que se prestasse aos seus fins: no Iraque, vizinho ao Irã, foi buscar em Sadam Hussein alguém para promover seus interesses, e promover a guerra Irã-Iraque, com sua década de mortes, fundamentalismos e armas químicas. No período até o Brasil lucrou com a matança: vendeu o lançador de foguetes astros II, blindados e até carros modelo Passat. Sadam, à época governava com mão-de-ferro o Iraque, mas se prestou ao papel “da liberdade” da vez. Algo que não se comentava no período era a crueldade de Sadam com seus adversários políticos dentro do Iraque, o que ficou bastante claro após, quando se tornou mais interessante ocupar e lotear o Iraque, tomar seu petróleo e matar Sadam, uma verdadeira encarnação do asmodeu segundo Bush pai e Bush filho. Houve primavera no Iraque? Apesar do termo não estar em voga quando da ocupação, tentou-se, à força, impor a democracia (!?) aos iraquianos, os quais apresentam indícios de que não tardaram a eleger líderes xiitas e a implantar lá uma teocracia.
Outro lugar, outro cenário, parecido em parte pelos credos dominantes e pela aridez do solo de boa fração de seu território é o Afeganistão. E lá se tem outro exemplo interessante sobre figuras de linguagem aplicadas ao mundo árabe. Aquela terra sempre foi muito difícil de ser conquistada, dominada e ocupada pela civilização ocidental. A Inglaterra tentou, não conseguiu. Pelo lado “do mal” a União Soviética tentou durante uma década, passou vergonha, fez lá seu Vietnã e bateu em retirada no final dos anos 1980. Entre os sujeitos que lutaram contra a tirania atéia soviética, destacaram-se os mujahidin, dentre os quais emergiu a liderança de Osama Bin Laden e sua turma, os talibãs. Hoje, “talibã” serve para identificar pessoa fundamentalista, extremista, terrorista, ou mesmo pessoas intransigentes, teimosas e retrógradas. À época da ocupação soviética, talibãs eram apresentados como justos defensores de seus territórios, povo aguerrido e simples que tinha que lutar, sobre cavalos, contra a máquina militar de uma potência nuclear. No filme-porcaria Rambo III, feito da propaganda anti-soviética norte-americana, os talibãs são apresentados como homens batalhadores, que lutam pela liberdade enquanto ajudam Rambo a trucidar soldados do “império do mal”. São chamados de “cavaleiros da liberdade” (!!!???) pelo governo Reagan, que treinou, forneceu informações e armou o fundamentalismo afegão. Para entender o papel dos norte-americanos, especialmente da CIA e dos stingers durante o conflito, um filme é interessante: jogos do poder. O que ocorreu depois nem é preciso comentar, mas a conveniente alcunha de cavaleiros da liberdade seria a última, hoje, a ser posta aos talibãs. Estes, ainda seguem tocando o terror e tem apoio de boa parte da população afegã para (re)afirmação de outra teocracia com burca.
De volta para o presente, estamos a perceber que os jardineiros da primavera árabe não são tão jardineiros assim, considerando que possuem certa alergia ao pólen da primavera democrática de modelo ocidental, que de metáfora, como se percebe, parece que não passará. Pelo menos é o que apontam os acontecimentos primaveris. Alguns sujeitos que, segundo os jornalões, poderíamos chamar de “jardineiros com alvará”, legítimos, ou seja, defensores da democracia padrão ISO 2011 (neoliberal), já amargam seus lugares em masmorras ou a sete palmos no subsolo. É o que tem se visto nos conflitos da primavera egípcia: após a queda de Mubarak, uma junta militar assumiu o poder e não quer largar o osso. O pau continua cantando na terra das pirâmides e parece que a brisa democrática não virá tão cedo - foi substituída pelo calor das bombas policiais e dos canos de fuzis, com uma ditadura militar no horizonte.
O ditador mais espalhafatoso de nossos tempos encontrou seu fim na primavera Líbia. Kadhafi (ou Gadhafi) acabou sendo trucidado por seus compatriotas, do mesmo modo como fazia com quem não gostava de suas roupas e de seu governo. Este ditador teve azar: seus opositores contaram com o apoio da OTAN para acabar com as “poderosas” forças militares de Kadhafi. Considere-se que a Líbia possui valiosos poços de petróleo a serem rateados entre empresas não-líbias nos próximos anos. A primavera Líbia aparentemente ainda não cessou, mas tende a terminar com a exclusão do povo líbio dos melhores e mais rentáveis frutos de sua própria terra.
Na Tunísia a primavera também é conhecida pelos tunisianos como a revolução de jasmin, uma onda de protestos violentos turbinados pelos altos índices de desemprego e pela corrupção governamental, que resultou na renúncia do presidente Zine Al-Abidine Ben Ali. Até aí tudo bem, tudo no clima primavera. Mas, não esqueçamos que por lá, para boa parte da população, Estado, religião e política constituem um todo monolítico, e, consequentemente, nas eleições sempre surgem partidos, digamos, confessionais. Verdadeiro sonho de alguns pastores e padres daqui, tais partidos conseguem boas votações da clientela fiel, como o exemplo do tunisiano partido islâmico Ennahda, mais votado nas eleições realizadas de outubro com mais de 40% dos votos (90 dos 217 assentos da assembleia constituinte).
Cabe lembrar que o fogo no rastilho de pólvora da primavera começou na Tunísia, se esparramando de leste a oeste, do norte da África até o Oriente Médio. Em alguns países a primavera se transformou em verdadeiro inferno para quem se dispôs a lutar por mudanças, como o exemplo da Síria, onde a matança de manifestantes segue dia a dia, sem que as potências ocidentais façam alguma coisa. Claro, lembremos que existe uma distância grande entre defender ideais de liberdade onde tem muito petróleo e simples ideais de liberdade e democracia. De qualquer modo, assim como em outros países da região que tentam realizar sua própria primavera, no lugar de ditadores não se impõem, necessariamente, proposições de Estados e governos democráticos: em muitos se percebe o risco de substituir uma ditadura por outra ou de se estabelecerem governos teocráticos. Modelos que pareciam ser da moda primavera de 2011, serão substituídos por políticas do tipo que estimula o uso de véus e condena tudo que pareça libertinagem. Obviamente, não se pode desprezar o caráter ocidentalizado, em termos, de alguns dos países da região, os quais, a princípio, estão menos suscetíveis as influências de grupos fundamentalistas que, entretanto, constituem um espectro muito influente na região. Naquele contexto, a possibilidade de constituições serem confundidas com o Corão não é de se desprezar. Infelizmente, para boa parte dos caras que moram por lá, minissaia vai continuar sendo vestimenta das mulheres de longe, muito longe, só vistas em fotos. Minorias, mulheres, dissidentes e outros que não crêem ou não concordam hão de continuar na corda-bamba, mesmo depois da primavera.
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