Os 10 melhores filmes da década. Parte II: A arca russa (2002)

Seguindo com a lista dos 10 melhores filmes da década passada, não poderia deixar de postar sobre esse impactante filme russo. Dirigido por Alexander Sokurov, a obra é um verdadeiro tour-de-force desse grande cineasta, que ousou filmar tudo em um único plano-sequência de 90 minutos. Para isso, o diretor ensaiou durante vários meses com seu elenco e figurantes e marcou a data da filmagem para o dia 23 de dezembro de 2001, realizada com uma câmera digital. Claro que esse recurso não é novo no cinema, já tendo sido utilizado por Hitchcock (em "Festim Diabólico") e Orson Welles (em "A Marca da Maldade"), mas jamais havia sido implementado nessas dimensões.

pôster do filme

Sokurov leva o leão de ouro

É incrível imaginar o esforço despendido pela equipe de filmagem para que não ocorressem erros de continuidade, comuns mesmo em produções que passam pela sala de montagem. Mais impressionante ainda é perceber a enorme quantidade de figurantes que passeiam pela tela, os figurinos impecáveis e o esmero da produção, tudo mostrado em um único take, sem cortes. Nesse ponto, "A arca russa" é um triunfo da técnica, a prova cabal de que o grande cinema exige pegada, dedicação e muito talento.  No entanto a grande estrela do filme é mesmo a locação escolhida por Sokurov, o belíssimo museu Hermitage, em São Petersburgo, um complexo que inclui o Palácio de Inverno dos Romanov, entrecortado por largos corredores e que abriga entre suas paredes mais de três milhões (isso mesmo!) de peças de arte, entre esculturas, pinturas e artefatos históricos (confira aqui:http://www.hermitagemuseum.org/). Me recordo que, quando assisti ao filme, infelizmente não no cinema, fiquei absolutamente fascinado pela beleza do museu e o coloquei em uma lista particular de lugares a serem visitados em viagens futuras. De certa maneira, o local é a síntese da história da Rússia, um país fascinante e que, se for analisado no contexto da Europa, repleto de fatos peculiares que tornaram a história russa formidavelmente única em todo o mundo. Afinal, foi ali que nasceram Tolstói , Dostoiévski, Gogol, Tchekhov, Górki e outros gigantes da literatura, assim como foi ali que eclodiu a primeira grande experiência socialista do século XX e onde dois dos maiores exércitos da história, o francês e o alemão, vivenciaram suas derrotas mais cruéis.

o czar e sua família

O roteiro do filme utiliza um recurso da ficção fantástica para trazer ao espectador algumas dessas passagens da história russa, como o assassinato da família real e a revolução russa, sempre transitando entre o real e o onírico, e oferecendo ao espectador uma experiência fascinante em termos de linguagem cinematográfica. No início do filme, somos apresentados a um viajante do tempo proveniente do século XIX (o Marquês de Custine) que, sem saber como ou por quê, de repente se encontra passeando por fatos históricos que marcaram a Rússia nos últimos três séculos. Partindo dessa premissa, Sokurov realiza um filme extremamente denso, que exige concentração total e uma adesão incondicional `a opção narrativa feita pelo diretor, sob pena de perdermos o que de melhor a narrativa pode nos oferecer.

Ao final, o apreciador dos grandes filmes se sente ao mesmo tempo extenuado e recompensado. A primeira sensação decorre do esforço necessário para romper com o tipo de narrativa linear ao qual estamos acostumados e a segunda representa o prêmio máximo `aqueles que perseveram na busca da arte como expressão maior da cultura.